O início ...>>

Três da manhã. No silêncio da casa o relógio de pêndulo badalou a hora certa. Deixou no ar uma vibração de gongo e acabou por mergulhar no tiquetaque imperceptível de sempre. Sentado no chão e encostado a um dos sofás, pouso o portátil ao meu lado. Tenho os olhos cansados, a cabeça pesada. À minha frente as cadeiras da sala, todas encostadas à parede, transbordam de artigos de viagem meticulosamente organizados que já não cabiam na mesa. É apenas o que vai comigo no avião. A maior parte do material já voou com a mota para Buenos Aires. Sinto um forte baque de consciencialização. Interiorizo, como se fosse novidade, que sou mesmo eu que depois de amanhã entro num avião para Madrid, e logo Buenos Aires, para montar em cima de uma mota e iniciar a maior aventura da minha vida.


Nos meandros da azáfama preparativa dos últimos meses, pouco tempo sobejou que pudesse ser dedicado a mentalizar-me para o que aí vem. Não faltam papéis cheio de planos e mapas cheios de traçados, respeitando o credo em que para algo bem projectado não há que ter medo. Mas então que dizer deste enorme desconhecido que me invadiu agora mesmo, sem se fazer anunciar, a horas da partida, preenchendo todas as frestas de probabilidade do que pode correr mal?

 
Foram muitas semanas. Movimentei-me no plano teórico de um projecto quase matemático durante tempo suficiente e com intensidade bastante para perder a ligação à minha realidade emocional. Tudo voou ao sabor do meu sonho e do que imaginava possível. Como numa partida de xadrez, fui reagindo às jogadas do adversário, conduzindo-o por minha vez com pequenos passos firmes. Projectei com ambição, sentindo que controlava o jogo. O interesse cresceu, os convites sucederam-se, as pessoas incentivaram a ideia e já logo eram tantas as visitas ao site e tantas as palavras amigas! Chegaram e-mails com respostas positivas de apoio e chegou o material encomendado, viu-se a mota evoluir e o equipamento a ficar pronto, vacinas resolvidas e burocracias validadas. Tudo girava e as contas iam batendo certo. Jogava esta partida com um interesse despreocupado de quem aposta feijões.


Hoje, subitamente, tudo me parece diferente. As contas continuam a bater certo. Não me enganei nas somas dos quilómetros. As respostas dos patrocinadores não se alteraram. A proposta da «Visão» 1 está lá, intacta. Estes armários repletos de roupa, tenda, ferramentas e um mundo de brinquedos de viagem, mesmo ao pé das malas novas, junto às lentes e aos depósitos… ninguém lhes mexeu e no entanto, nada está como dantes. A mudança aconteceu comigo. De repente, as mesmas vozes de sempre começaram a falar-me de coisas verdadeiramente assustadoras, de aventuras para além do razoável, de feitos a exigir muita coragem. Aquilo era comigo. Deixei de ser imune aos comentários que relembro, surpreendidos pela distância, pelo perigo e pela solidão. Era de mim que falavam. O material à minha frente revestiu-se de uma estranheza a suscitar curiosidade, como se não fosse o meu. Os e-mails versam acordos surpreendentes e aqueles mapas que ali estão, cheio de rabiscos… Arrasto os olhos à minha volta. Uma desarrumação organizada toma conta da sala. Mas como é que isto tudo aqui veio parar? Aqui tão perto de mim. Tão de repente. Tão já aí tudo a acontecer, que parece que nem tenho tempo de respirar, já no sábado, que aflição!… Não, não me falta fazer muita coisa, não é isso. Não me falta tempo para completar o planeado. Falta-me é sintonizar esta realidade mirabolante que vejo agora ser minha. Falta-me é tempo para respirar fundo as vezes que possam digerir este pânico de estar tudo a acontecer, o avião até Madrid e depois, Argentina. E a mota que chega logo a seguir e tudo com ela. E os quilómetros, intermináveis, tantos que são o perímetro da Terra; apesar de tudo como é grande o mundo! E sete meses, quanto tempo é isso?
  

Caí do tapete voador. Foi-se a teoria e a cega coragem com ela. Amanhã é a valer. De repente, sou pequeno e um medo real traz a ansiedade feliz de saber que sou eu mesmo quem vai partir no meu sonho.