English 

Chile ou Bolívia?…>>

11-04-2007

A Casona de Coronel Moldes é a casa mais antiga do povoado: 1694. Mantém uma decoração rústica austera, escura, de pesadas portadas de madeira e uma enorme colecção de objectos antigos espalhada pelos grandes quartos e salas de estar. Numa delas, abandonado a uma parede, um Burmeister de notas presas, trazido recentemente. Aproveitei para desenferrujar um pouco os dedos, já que não havia mais ninguém hospedado. Os donos ficaram encantados, porque na verdade ninguém dali sabia tocar piano. Depois tomei o pequeno-almoço no alpendre que dava para o pátio interior e apreciei sem pressa a bonita manhã.

Salta deixou-me vontade de a conhecer melhor. Nesta cidade, a terra tremeu menos, coisa rara por estas bandas, e lá se foram aguentando uma série de edifícios antigos a marcar um estilo colonial alegre e arejado. Durante um almoço acalorado na Plaza de Armas só pensava na minha travessia da cordilheira, em direcção a San Pedro de Atacama. Ou seria ainda possível apontar para a Bolívia? Tinha poucas informações sobre as condições da estrada. Há alturas em que decidir sozinho é difícil. Terminei o meu medalhão da vazia em pimenta e ervas finas, acompanhado por um delicioso esparregado e um sumo de laranja natural. Como me trato bem aqui na Argentina!...

De volta à estrada, atravessei a serra que me separava da província de Jujuy e, do outro lado, escapuli-me dos chuviscos por entre milheirais. Parei na margem de um lago aproveitando um pausa na chuva incerta. Chegava até mim o som calmo de badalos de um qualquer rebanho que pastava perto. A tranquilidade do lugar apaziguou a minha ansiedade pela provável aventura do dia seguinte: exteriorizou-a numa personagem de ficção que viaja sozinha numa mota ao sabor do desconhecido e, por momentos, apreciei a preocupação dela com o distanciamento de uma leitura meramente envolvente. Assim fica mais simples.

Até Purmamarca o asfalto liso galopou pela planície anunciando a famosa Quebrada de Humahuaca, mais um pedaço de Património da Humanidade, aqui a colectar outra riquíssima contribuição argentina. No desvio, os sinais espelhavam a indecisão que haveria de ser resolvida um pouco mais tarde: para a esquerda, Purmamarca, Paso de Jama, Chile; para a direita, Tilcara, La Quiaca, Bolívia. Apontei para Tilcara e segui as placas de um hotel, já se tinha feito noite.

As ruas acusavam as chuvadas da tarde numa «lamice» suja e mal iluminada pelo laranja difuso dos candeeiros da vila, que projectavam vultos disformes nas paredes acastanhadas das casas. Na penumbra de um café, homens mal barbeados bebiam cerveja em mesas simples de madeira escura. Segui a placa seguinte que me desviou por uma ladeira de crianças descalças atrás de uma bola furada. Abandonei o motor ao ralenti e deixei a mota ir tropeçando nas pedras e buracos do caminho.

Recepção feita, pude estacionar à porta do quarto, o que sempre simplifica a logística da pernoita. Havia um beliche e duas camas sobre uma tijoleira rasca com um degrau a dar para uma casa de banho malcheirosa. Mais um quarto, mais uma noite, mais uma paragem antes de seguir caminho. Sei que os pormenores que agora vejo, esta cor desta madeira, estes cobertores maltrapilhos, estas paredes manchadas de humidade, todo este quarto se vai rapidamente evaporar da memória numa amálgama geral que representa estas dormidas. É bem mais fácil lembrar-me dos donos, sempre que lhes falo. E há vezes em que conversamos muito. Não desta.

Passeio a pé ainda sem fome suficiente para entrar num restaurante. Nesta parte, a vila tem melhor aspecto, cheira um pouco a turismo. Numa última esperança de salvar a etapa, confirmo na internet as previsões de chuva e frio para a Bolívia e as inundações do Salar de Uyuni. Entendo com dificuldade que esteja alagado àquela altitude. Temperaturas negativas e chuva constante para os próximos dez dias. A decisão está tomada e o regresso à Bolívia, esse país que há três anos atrás me deixou verdadeira vontade de voltar, fica adiado. Amanhã sigo para o Paso de Jama, atravessando a cordilheira a quase 5000 m de altitude, direcção: São Pedro de Atacama, coração do deserto mais seco do mundo. Fiquei mais leve com a certeza dos planos e veio o apetite.

Acompanhei o jantar com um óptimo Syrah-Cabernet Sauvignon. Entradas, queijo, prato principal e um copo de vinho de qualidade, aberto no momento. Doze pesos. Tudo? Sim. Por momentos pensei que fazia mal as contas, mas não. Doze pesos são mesmo três euros. Paguei. Para uma vila como esta, relativamente turística, pareceume um preço inacreditável, mesmo considerando que estamos no limite norte do país, sem dúvida a zona mais pobre da Argentina. Devo dizer que a qualidade da minha refeição pouco ou nada ficou a dever a um restaurante da capital.

Regressei ao hostal e à parte suja da vila. Um camião velho passou, rebocando um carro ainda mais velho; chiavam as suspensões nos buracos. Para lá da esquina, na viela escura, as crianças já não chutavam à bola e três homens debruçavam-se com embaraço sobre uma mala aberta, pareceu-me ver qualquer coisa a desaparecer para o lugar do pneu sobressalente, sob o tapete. Imaginação minha, talvez, que alimentei tentando adivinhar qual das fronteiras iria o carro atravessar. Pelo sim, pelo não, apressei o passo.

Começaram a cair pingas grossas e um relâmpago forte iluminou tudo de branco. O trovão veio de longe, arrastando-se numa tremedeira rouca e abafada. Num repente, estrelaram mais clarões e soaram estrondos mais fortes. No quarto, as janelas abanaram com o barulho, salpicadas pela água forte da chuva. A tempestade chegou com pressa e com a mesma pressa se foi, abandonando apenas um cheiro a terra molhada que entrava pela frincha da janela. Tudo calmo outra vez, adormeço a pensar na grande travessia do dia seguinte.


Comentários
Destino ao objectivo
Cá, deste lado, continuo atento às tuas aventuras de viagem e satisfeito porque tudo continua a correr bem. Ao mesmo tempo ansioso pela crónica seguinte, para também eu viajar. Um abraço e... boa viagem
por Manuel Teixeira em 2007-04-11 09:50:33
Força
Continuação de boas aventuras!
por João Remelgado em 2007-04-11 11:04:11
Um Oásis
Um Oásis expressão cultural, é o que eu penso te terá ocorrido quando te sentaste frente às teclas daquela piano! É muito bom que alguém como tu demonstre aos outros países que por estas bandas do nosso Portugal existe gente assim: com boa e variada cultura. Parabéns e muita força para continuares!...
por Rogério Pinto em 2007-04-11 11:48:53
PEQUENA SUGESTÃO
Gonçalo
Acompanho a tua aventura desde o primeiro dia através da imprensa, o site e algumas entrevistas que pude ver ou ouvir e se até agora me abstive de comentários, já não aguento mais. Pois a 1ª Parte da tua viagem é a que eu há alguns anos ando a sonhar fazer.
Os meus parabéns pela coragem em deixar tudo para trás e ires em busca de um sonho que é a aventura que estás a viver. Claro que houve e vão continuar a existir contrariedades, mas esse é o tempero que torna as coisas especiais, lembra-te "A SORTE PROTEGE OS AUDAZES" e tu já tiveste a prova, pois tudo acabou por se resolver da melhor maneira.
Realmente as tuas crónicas são viciantes, pelo modo como escreves e descreves as paisagens e as situações, que quem lê parece que está a passar por elas. Continua em frente e os desejos de que tudo corra pelo melhor, pelo que vejo já tens uma legião de fãs a apoiar-te incondicionalmente.
AGORA A SUGESTÃO: Como tens um GPS que regista todo o teu trajecto, era porreiro colocares os Tracklog's no site. é que assim era possível através do Google Earth ver todos os sítios por onde passaste. Bo@s Curv@s

por Nuno Feliz em 2007-04-11 14:10:23
...o sonho comanda a vida..
e umas teclazinhas solitárias á sua espera? Isso é que é assunto. Nada como deliciarmo-nos com um vivinho de qualidade e o som do piano. Que mais surpresas nos reserva ?
Boa continuação, força !
por elizabeth carvalho em 2007-04-11 18:07:33
Pesos que nao pesam na carteira
Gostei do pormenor dos preços :) não sei se este meu gosto por economia mas acho que é sempre bom termos uma ideia do que nos esperaria caso fossemos nós nessa viagem :)
por Dan Mac em 2007-04-11 22:44:01
Goncalao
Rulas, meu. Mais uma cronica porreira.
por Goncalo Maia em 2007-04-11 23:12:32
Piano e um bife fabuloso!
Duas coisas me ficaram desta entrada: o facto de termos um motociclista pianista, :D, e a facto de SIM, é barato e bom comer na Argentina! Ai maravilha!
por Gustavo "MisterBondPT" Almeida em 2007-04-11 23:21:03
Piano e um bife fabuloso!
Duas coisas me ficaram desta entrada: o facto de termos um motociclista pianista, :D, e o facto de SIM, é barato e bom comer na Argentina! Ai maravilha!
por Gustavo "MisterBondPT" Almeida em 2007-04-11 23:21:15
O piano
entao fizeste o gosto ao dedo.....soube bem encontrar o piano, um dos teus dotes, que sao muitos
bjs
por xamay em 2007-04-12 20:15:13
Música
Se os teus fãs recentes doubessem como tocas piano, ficariam a desejar que além de fotos pudesses por som nas tuas crónicas. Saudades da tua música, amigo!
por Ana em 2007-04-13 08:05:17
Eu sabia.....!
Estava ansioso por esta crónica, é que eu gostei tanto das vezes que te ouvi tocar Pavlov´s Dog acho que é uma imagem e um som que nunca esquecerei...! Para mim Fala-se em Gil Mata, fala-se em piano, fala-se em boa música....! Obrigado Gonçalo....!
por Finório em 2007-04-13 10:12:55
Que passa hombre?
Espero que esteja tudo bem, pois já passaram vários dias sem notícias. Não é habitual. Continuação.
Pedro/Porto/Portugal
por Pedro em 2007-04-16 11:01:14
falta de noticias
O que se passa?! Não temos tido noticias! Espero que tudo esteja a correr pelo melhor.
por John Santiago em 2007-04-16 22:48:20
Chile ou Bolivia
Caro Gonçalo... acho que escolheste bem. Principalmente se o teu primeiro crit
ério de escolha for a qualidade das estradas. Até porque isso é coisa que não existe na Bolivia. Fiz de autocarro a viagem entre Uyuni e Villazon para entrar na Argentina em La Quiaca há umas 2 semanas atrás e devo dizer que foi bastante turtuoso. E eu estava numa camioneta. Agora imagino-te de mota. Estradas não há. O que há são caminhos de cabras, com ribanceiras pouco convidativas, rios secos e dunas de areia (onde o meu autocarro se atolou umas três vezes). De Salta a Uyuni de autocarro serão umas 24 horas e duvido que de mota se consiga fazer mais depressa. Mas se tiveres a oportunidade, espreita o Salar de Uyuni na Bolivia. Não sei se poderás seguir para lá sozinho à aventura mas se puderes vai porque é uma coisa simplesmente inacreditável. Se gostaste dos salares em Salta, esquece. Este é muito melhor!!

Abraço
por Mais um mochileiro em 2007-04-18 02:16:21
E a Bolívia ?
Boa . Agora vou eu . Abraço
por Pedro Barbosa em 2024-01-21 17:03:09
35.000 km
15 países
7 meses (Jan-Ago 07)